Entre muitas outras mulheres, as Camponesas de Riachos:
As mulheres Camponesas “foram sempre as mais sacrificadas” diz o senhor Joaquim Santana (in Cingeleiros, boieiros e camponeses de Riachos, 2003, p. 47).
Falar das mulheres camponesas, mesmo que seja só das da nossa terra, não é um trabalho de conhecimento direto, é antes um trabalho de empatia. Empatia por um número imenso de mulheres que foram autênticas heroínas, à luz do nosso tempo consumista, mediático, acético. Fazem parte da História dos invisíveis. Viveram na sombra, na pobreza, no silêncio, numa sociedade na qual não eram de todo valorizadas, mas na qual viveram os mesmos problemas que a condição de se ser mulher sempre traz: os dias especiais do mês, as gravidezes, os partos, em condições tão difíceis, que hoje nos é difícil imaginar, e a que se acrescentava o trabalho duro no campo, a que bem cedo se acostumavam. Muito cedo aprendiam o caminho para o campo acompanhando as mães. Eram raras as que aprendiam a ler e a escrever.
Até aos anos 40 do século XX a esmagadora maioria das mulheres riachenses trabalhava no campo em serviços sazonais ou permanentes. Começavam a trabalhar muito cedo para ganharem uns míseros tostões.
Numa das cantigas do repertório das nossas Camponesas, vislumbra-se quase uma ironia referente à exploração do seu trabalho braçal:
Ó prima vamos à ceifa
Ó prima vamos ceifar
Foi na ceifa que eu ganhei
Um lenço p´ra me assoar.
O trabalho da ceifa era duro, muitas horas de costas dobradas, o peso da foice, a força necessária para cortar o cereal, e depois a paga, comparada com o esforça, era uma ninharia. Tanto esforço que só daria para comprar um pequeno lenço, o que já seria um luxo, porque o dinheiro era sempre pouco para alimentar a família.
Calcorreando caminhos lamacentos ou empoeirados, descalças, trabalhavam nas vindimas, no ajuntar a lenha cortada quando das alimpas das oliveiras, nas mondas, arrancando as ervas das searas de trigo, nas sachas, nos trabalhos das hortas, nas ceifas das favas, da aveia, do trigo, na limpeza da eira, na apanha do feijão e do milho, o descamisar, na apanha do figo e na sua secagem.
Na apanha da azeitona quantas vezes encharcadas, debaixo de chuva, eram as mulheres quem, “por terem as “cruzes” mais flexíveis”, como escreveu o professor Chora Barroso (in “Riachos – História-Costumes-Biografias”, 1989,p.72), debruçadas, horas a fio, apanhavam do chão os bagos que não caíam dentro dos panos. Os trabalhos no cânhamo obrigavam-nas a andarem dentro de água, rio afora.
Mulheres, irmãs, filhas eram quem levava o farnel, a comida, aos homens que trabalhavam no campo. “ Quase sempre só no final da refeição, “é que a mulher se atrevia a tomar também a refeição junto do marido.”Numa atitude de submissão ”Tomava da caldeira e comia o que o seu homem lhe havia deixado,” escreveu ainda o professor Chora Barroso (in “Riachos – História-Costumes-Biografias”, 1989,p.72). O assento era o chão ou a sapata de uma oliveira. As refeições eram frugais, numa dieta onde não cabia a fruta, alimento raro.
Para além do trabalho no campo, e tantas vezes dos abusos de capatazes e de patrões, tinham ainda o trabalho em casa, o cuidar da família, que sempre foi obrigação sua. A acrescentar a tudo isto, a sua dependência dos pais e dos maridos, e muitas vezes a dependência destes, do álcool, que desencadeava cenas de violência que tornaram a vida num inferno a muitas mulheres, também nesta época, a uma escala que desconhecemos, porque muitas já cá não estão para contar, mas que era uma dura realidade, recordada pela Júlia, no livro, e a que os versos de uma das cantigas parecem também talvez aludir:
Não quero um amor boieiro
Não quero um boieiro não
Não quero à minha porta
Homens de vara na mão
Não significa, é claro que os boieiros fossem todos, ou particularmente, agressivos, mas a verdade é que podemos encontrar um duplo sentido nestes versos: uma brincadeira de cariz erótico, tão comum, aliás, entre estas mulheres, que também se sabiam divertir, e brincar com a própria sexualidade, com muito maior à vontade, do que as mulheres burguesas ou pequeno burguesas. Mas podemos encontrar também, nestes versos, uma possível advertência contra a violência doméstica: não quero à minha porta homens de vara na mão, homens que podem ser agressivos e podem bater. Não sabemos qual era a intenção de quem criou estes versos, homem ou mulher, mas a verdade é que podemos encontrar os dois sentidos. E isso é um dos encantos que as cantigas destas mulheres também nos trazem. Duplos sentidos, metáforas, mas que sempre falam das suas vivências. Das suas vidas invisíveis, mas intensa e profundamente vividas.
Há nas suas duras vidas, no entanto, algo a assinalar relativamente à mão de obra imigrante que as veio substituir na agricultura contemporânea, e que faz alguma diferença. Estas mulheres estavam integradas numa família, melhor ou pior, a sua família. Viviam na sua casa, embora pobre mas a sua casa, numa comunidade onde viviam tradições comuns, onde conheciam quase toda a gente, tinham companheiras e amigas desde crianças, com quem partilhavam alegrias e tristezas. Com quem aprendiam a costurar, a bordar, a fazer rendas e malhas.
Tinham brio na sua roupa, faziam o enxoval. Brincavam, namoravam, dançavam nos bailes de roda nas ruas, e nas sedes das coletividades. E cantavam. Cantavam muito. Por vezes para esquecer a fome.
Da dureza das suas vidas é este livro um bom testemunho, tal como o percurso artístico e mediático destas Camponesas de Riachos. Nas suas apresentações não se limitaram a cantar, foram também historiadoras na primeira pessoa, de um tempo vivido por elas e por muitas e muitas outras camponesas por esse país fora. Divulgaram as suas cantigas e o contexto laboral, vivencial, no qual fizeram dessas cantigas parte integrante e importante das suas vidas. Recordaram e honraram as camponesas, tornaram-nas visíveis.
A primeira coisa que me cativou, foram as suas vozes. Inconfundíveis vozes do campo. Com uma beleza tão singular, tão genuína. Com elas trouxeram a nostalgia de um tempo mítico, é certo, do tempo que cristalizamos na nossa memória, e cuja mitificação culmina na celebração da Festa da Bênção do Gado. Gostamos de lembrar o que de bom aconteceu nos tempos que já lá vão, a nossa relação íntima com a natureza, os cheiros, as cores, a atmosfera desse campo que nos envolvia, mesmo vivendo no centro da aldeia.
O seu sucesso passou certamente pelo exotismo da sua forma de cantar, de estar, de falar, de falar de um tempo que para muitas pessoas é desconhecido, mas também, e talvez principalmente, por trazerem nas suas vozes ainda a muitos de nós, lembranças do tempo das aldeias rurais, da nossa relação direta ou muito próxima com a vida nos campos.
O livro termina com a saudade. De quê? Perguntamos nós. Saudades de se ser jovem, dos risos, dos sonhos, das brincadeiras, de cantar de cantar muito, de as cantigas serem uma forma de expressão privilegiada à qual por isso mesmo, voltaram, voltaram com saudade, voltaram com as suas vozes autênticas, e com a emoção que também nos fazem sentir. E agora, saudades dos palcos, das pessoas, de cantar, do grupo.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas quando vi que o meu nome figurava nas três primeiras palavras do livro. Percebi o quanto continuam agradecidas pela experiência naquele palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, que foi também para mim uma prova de fogo, e que pensam que tudo começou aí. Mas mesmo que aquela inesperada ida a Lisboa não tivesse acontecido, o grupo existiria na mesma, estou certa. Estão todas, todas, as que fizeram parte do grupo, de parabéns, por tudo aquilo que conseguiram fazer nuns intensos quinze anos. Mas todos sabemos, também, que o espírito de liderança da Júlia Proença foi o grande motor que ajudou a projetar o grupo desta forma extraordinária. A Júlia conta que foi capataz das mulheres num trabalho por conta do Dr. José Marques. Era muito jovem, mas as suas qualidades de líder já eram reconhecidas. Foi sem dúvida a sua vontade, a sua coragem, a sua perseverança, a sua teimosia, associadas ao grande prazer de cantar de todas, que sim, decididamente, catapultaram este grupo de mulheres riachenses para uma aventura verdadeiramente inesperada.
Obrigada por me incluírem na vossa história, na história do grupo, na história das vossas vidas.
Célia Barroca 5 de março de 2023