De Vez em Quando a Cultura

Historiador, professor aposentado

Era Bom Poder Desenhar A Escrita do Tempo

por

António Mário Lopes dos Santos

 

De Vez em Quando a Cultura

 

É um tema em que não gosto de mexer.

 Se algo há que o tempo me ensinou é de que é mais fácil um político passar pelo buraco da agulha que a arte ser assumida como património pelo poder. E diga-se: Torres Novas nem é dos municípios que, quando ouvem alto essa palavra, rememoram Trump e Bolsonato, e empunham a pistola como aviso.

Do governo não sei, a cultura da capital raro encontra caminho no labirinto para a província e a que descobre que o basbaquismo é uma teta a chupar lá vem com seus catálogos de turismo buscar o ouro que as autarquias acumulam à custa dos impostos e mais valias locais, sem o mínimo remorso em relação ao que nem sequer as preocupa em  saber se o local produz.

 Com raras excepções – há sempre umas medalhas que a pátria distribui por ser de bom tom –, a cultura é uma coisa que se agita fora do tempos da  produção, distribuição e consumo das mercadorias, que são os símbolos panegíricos das sociedades assentes na exploração do trabalho pelo capital.

É uma desmercadoria, só dá chatice, de escassíssima procura, e obra de produtor nunca satisfeito com o fraterno e condescendente  apoio mecenático do governo ou  dos municípios, sempre prontos ao corte da fita, à apresentação da obra, ao elogio do autor.

De norte a sul,  neste Portugal envelhecido de mão no peito e muito futebol, com uma juventude na sua maioria – há sempre minorias, felizmente, para a vida e para o mundo, com outro olhar e sábia resistência - cada vez mais esquecida da gramática e nunca disposta à matemática, mas preparada para o que vier à rede é peixe desde que compense, e com pouca paciência  para essa  coisa da cultura, esse disparate de coisas que fazem doer só de as pensar, gente de pouco tino, vazia bolsa,  de todo em todo revoltada, e muito duvidosa no ser e no estar, que nem percebe que o saber está no telemóvel e nas redes socias.

 A criatividade, a imaginação, o acto da reflexão e da partilha, coisas que nunca conseguiram ultrapassar o trajecto escuro dos subterrâneos,  o percurso clandestino duma resistência que, se se não puder evitar, se tenta domesticar. Camões o disse, Bocage o sentiu, Antero se despediu, Cesário o escreveu, Pessoa dasassossegou, Torga ironizou, Cesariny escandalizou, Jorge de Sena sofreu.

Exemplos  de gente mal agradecida, num mundo que os celebrou em tabuletas de ruas e transcrições nos seus discursos da pública cerimónia social. (E só cito um mundo que conheço bem;  outros, no teatro,  dança, arquitectura, escultura, música, pintura, das ciências sociais às científicas, decerto acrescentarão o seu rol dos ignorados).

Daí que  tenha ficado atento à  discussão, no município de Torres Novas, por aí ter nascido, e ainda vivo, do Plano Estratégico da Cultura do Concelho, gizado por uma equipa de investigadores da Universidade do Minho, posto a discussão pública. Metida a mão na massa, colhidos os textos em debate, as centenas de páginas científicas eram uma  muralha contra a curto tempo previsto para qualquer séria  intervenção. Mas fiquei logo tranquilo: cinquenta e dois ilustres e anónimos cidadãos tinham sido chamados a debater e a intervir desde o início.  Se estava tudo mastigado e em plena digestão, para quê um debate público?

 Interessava, sim, a transparência, quem foi o quem ouvido e entrevistado, como  chegaram, afinal, à conclusão,  de sempre, mais que  conhecida:  a municipalização  da cultura tem pouco a ver com a realidade cultural do município.

E se  a proposta da criação dum Conselho Municipal da Cultura só peca por atraso de décadas dum governo socialista de maioria absoluta, o que corre, o que se diz, é que este antes de ser já o era, as cadeiras já estão ocupadas, só falta a das colectividades e afins para fechar o embrulho, fica-se com o pressentimento de que alguém anda armado em aprendiz de feiticeiro, sem cuidar no perigo dum virus se escapulir e ficar-lhe nas mãos a responsabildade  do desaire da iniciativa.

A leitura da imprensa concelhia, os problemas que a atingem, os avisos que coloca, a acção municipal para a sua continuidade, sem ingerência, deveria lembrar-lhe como a democracia é frágil, nada existe que não seja irreversível, os lugares que ocupam já o foram doutrem, sem nenhum voto, nem opção.  No aniversário do 37º Aniversário da passagen de Torres Novas de vila a cidade, parece que a memória só funciona com a subida socialista ao poder municipal, sem nenhum respeito pelo contributo dos que antes e depois de Abril, lutaram para que o concelho ainda seja e tenha uma identidade e um património nacionalmente reconhecido.

Daí que nunca se comece a discussão pelo  início. O  que entende a Câmara por cultura? Qual o seu orçamento, o seu papel, a sua intervenção, a sua autononomia, a sua responsabilidade, no desenvolvimento das potencialidades sócio-culturais das populações?     

          Como intervirá a Conselho Municipal da Cultura na relação sociedade-autarquia, num  projecto-plano de médio prazo, que abranja os sectores e pessoas locais, na actividade artística, social, desportiva, nas associações, na imprensa, nas escolas, nas colectividades, nas freguesias, nos partidos? Que saiba ouvir antes de planear, que conheça os caboucos antes de soerguer as paredes? O presente conta, porque o passado o força. Ignorar o que existiu, além de inútll, apenas atrasa o regresso do rio ao seu caminho para a foz. Não se domestica o tempo com publicidades falsas,  a cultura sobreviverá , como sempre, faça  o poder o que faça. José Lopes dos Santos, Faustino  Bretes, António Borga, Maria Lamas, Lúcia Namorado, alguns exemplos locais  que o poder fascista quis silenciar. As obras ficaram, e os nomes do poder? Quem foram? Que fizeram? Que proibiram? Que silenciaram?

Medite-se no programa das festas da Benção do Gado, na vila de Riachos, entre 22 de Julho e 1 de Agosto. O acontecimento, local,  patrimonial, cultural, artístico, musical, associativo, desportivo, sociológico, predomina sobre o apelativo nacional, que também vem no cartaz. A cultura aí entronca na proximidade e no respeito memorial. Não artificializa ou mente. E os seus valores aí se apresentam, diversificados, no individual, como no colectivo.

Pedro Filipe Soares, deputado do BE, sobre a multiplicação dos órgãos de consulta do Estado, comentou: «vem acompanhada da multiplicação de estudos que não servem para grande coisa, que não têm em conta o anteriormente produzido e que são ignorados no momento da decisão».

Passar a cultura pelo buraco da agulha? Mas fácil passarem os governos e as vereações  muncipais...

Querem apostar?

Opinião de António Mário Lopes dos Santos publicada no Jornal "O Riachense"

 

antoniomario45@gmail.com

Julho/14/2022