Remoo, dorido, as palavras de Ana Cristina Leonardo, na sua secção, Meditação na Pastelaria, no Ípsilon, suplemento do Público, em 22 de Março:
«No nosso caso o ontem foi há 50 anos e a célebre pergunta de Baptista Bastos: “Onde é que estava no 25 de Abril?”, arrisca-se a ser brevemente trasladada da TV para os cemitérios, e preparando-se, mais e mais, a hipotética pergunta: «onde é que estava no 5 de Outubro? C’est la vie.»
É certo que o tempo esboroa a emotividade única das efemérides.
No fascismo continuou-se a comemorar-se o 5 de Outubro, com almoços de confraternização, romagens aos cemitérios, discursos e deposição de flores nos túmulos dos mais famosos. O salazarismo controlava, pela Pide, os intervenientes, e tomava medidas em relação aos mais recalcitrantes e entusiastas. O perigo mais evidente e real era o comunismo, nas suas variantes, e a esses, militantes, o tratamento era doutra ordem: prisão, tortura, degradação e humilhação, por vezes assassinatos.
As comemorações oficiais do cinquentenário do 25 de Abril caminham, ainda que garantida a liberdade, para cerimoniais similares aos do 5 de Outubro.
Se são já poucos os sobreviventes que contribuíram para a revolução militar, são raríssimos os das lutas clandestinas e das assumidamente intervenções ilegais, nas associações, nas fábricas, nas universidades, na vida militar, na cultura, na imprensa amordaçada, na clandestina.
Fazer-se, hoje, a pergunta de Baptista Bastos, implica uma segunda e uma terceira. A quem? E por quem?
Os cemitérios receberam já os corpos da maioria desses militantes pela liberdade. Há imagens e informação escrita, há imprensa e memória. Mas quem a lê? Quem a estuda? Quem a divulga?
A enorme maioria da classe política, nacional e/ou municipal, integrada nos partidos instituídos, ou legalizados, na democracia, sabem do fascismo, alguns, por tradição familiar, a maioria pelo que surge nos órgãos de informação, sobretudo os televisivos, com um distanciamento, ou um tratamento, conforme aos interesses partidários actuais.
Quando um ex-dirigente do MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal, organização terrorista contra o 25 de Abril, muita activa em 1975), Diogo Pacheco de Amorim, foi recentemente eleito vice-presidente da Assembleia da República, como representante do Chega, a pergunta de Baptista Bastos, que resposta, daquele, teria? O que aconteceria, se a alargássemos, não só aos deputados eleitos, mas às vereações municipais e juntas de freguesia de todos os concelhos do país?
Daí que os festejos do cinquentenário prometam ser, não uma memória dum golpe militar que o povo transformou, ao sair para a rua, em revolução popular, mas um lavar as mãos como Pilatos, enquanto se não transforma o acontecimento numa efeméride de calendário e de almoços protocolares com discursos pífios de gente muito interessada, mas na efeméride do seu umbigo. Como, e nisso alinho, concluiu, com amargurado sarcasmo, a cronista citada: c’est la vie.
O fascismo que bem conheci, o 25 de Abril que festejei nas ruas da minha então vila, nesse mesmo dia; do empenhamento popular em que participei, em 1974 e 1975; do posterior activismo; tudo faz parte duma vida que ainda se insurge contra as desigualdades económicas e sociais, e continua atenta às ameaças que o neocapitalismo liberal utiliza para domínio e sujeição dum povo nada politizado, crente em qualquer vendedor de ilusões que lhe prometa mundos e fundos, sem nunca se comprometer com nenhum. E sabe, intimamente, que o 25 de Abril é um marco que, como o 5 de Outubro, o fascismo nunca conseguirá suplantar, porque há sonhos que ficam marinando na crença das sociedades. Este é um deles. Guarda em si a necessidade de resolver problemas sempre falados, nunca concretizados: a casa decente, o salário digno, a escola capaz, o centro de saúde ou o hospital público de confiança, a creche dos filhos, o apoio social garantido na velhice, a contenção dos preços e dos lucros.
No fundo, cumprir a pergunta incómoda, renovando-a, do Baptista Bastos: o que quer fazer para defender o cumprimento do programa do 25 de Abril? Sair à rua, como o fez há 50 anos?
A liberdade ou o autoritarismo?
A escolha, povo, é tua.
Abril, 1, 2024
Crónica de opinião publicada no 'Jornal Torrejano'