A partida de um gigante da imagem: Sebastião Salgado

Estudante, activista do BE

Salgado ensinou-me que a fotografia pode ser denúncia, pode ser poesia, pode ser um grito ou um abraço.

Hoje, o mundo perdeu um gigante da fotografia, e eu perdi uma das referências que mais me motivou desde o instante em que decidi dedicar-me a esta arte.

Hoje, 23 de maio de 2025, Sebastião Salgado partiu, mas a marca que deixou na minha vida e na de tantos outros fotógrafos e jornalistas será eterna.

Antes de se dedicar à fotografia, Salgado foi economista. No entanto, a opressão da ditadura militar no Brasil forçou-o, tal como a muitos outros, ao exílio. 

Ele e a sua companheira, Lélia Wanick Salgado, mudaram-se para Paris no início dos anos 70. Foi lá que a sua aventura como fotógrafo realmente começou.

A dor do afastamento do país de origem transformou-se, com o tempo, numa vontade inabalável de compreender e contar o mundo. Não só o Brasil, mas todos os lugares onde a dignidade humana era posta à prova.

Recordo-me da primeira vez que vi uma fotografia de Salgado. 

Foi como levar um murro no estômago, não só pela beleza técnica da imagem (que por si só já era suficiente), mas pela profundidade emocional, pela carga humana que emanava de cada rosto, de cada movimento, de cada sombra capturada com uma precisão quase cirúrgica. 

As fotografias não eram apenas belas, eram essenciais, eram vibrantes e eram a realidade.

O trabalho de Salgado ensinou-me que a fotografia não serve apenas para mostrar, mas para revelar. Revelar desigualdades, resistências, culturas invisibilizadas, momentos que de outra forma se perderiam no ruído do mundo. Ele mostrou-nos que fotografar é um acto político, e profundamente humano.

Foi também com Salgado que aprendi a respeitar o tempo da imagem. Num mundo dominado pela velocidade, onde se espera que tudo seja imediato e descartável, ele seguiu outro caminho: o da paciência, da escuta, da presença. Passava meses, por vezes anos, imerso nas histórias que queria contar. E essa entrega total a um projecto, essa recusa em ser superficial, marcou-me profundamente.

Um dos projeto que mais me impressionou foi Workers (Trabalhadores), onde documentou com dureza e beleza a realidade de homens e mulheres que sustentam o mundo com os seus corpos. 

Mais tarde, em Êxodos, acompanhou migrantes e refugiados, mostrando não apenas a dor do deslocamento, mas também a resiliência. E, em Génesis e Amazónia, já com uma abordagem mais ecológica, levou-nos a reflectir sobre o planeta como casa comum, ameaçada mas ainda belíssima.

 

Há um momento que me toca particularmente: Salgado esteve em Portugal no dia 25 de Abril de 1974. Esteve aqui, connosco, a documentar o nascimento da nossa democracia. E, mais do que documentar, captou a alma do momento, os sorrisos, os cravos, os militares e os civis, todos juntos a construir um novo futuro. 

As imagens que nos deixou da nossa revolução não são apenas históricas, mas profundamente emocionais. Elas ligam-nos a um passado que, pela sua lente, continua presente.

A vida de Salgado não foi isenta de dificuldades. Durante a realização do projecto Génesis, contraiu malária na Nova Guiné e enfrentou problemas de saúde graves. Ainda assim, persistiu. Não por vaidade ou ambição pessoal, mas porque acreditava que a fotografia podia ser uma ferramenta de transformação, da mente, da consciência e do mundo.

Ele e Lélia, a sua companheira de vida e de luta, criaram o Instituto Terra, responsável por uma das mais bem-sucedidas experiências de reflorestação no Brasil.

O fotógrafo que passou anos a captar a destruição causada pelo homem quis também, com as próprias mãos, ajudar a reconstruir. Este gesto diz tudo sobre ele: um homem comprometido com aquilo que fotografava. Um humanista.

O seu falecimento deixa um vazio imenso. Mas também deixa um legado. E é esse legado que levo comigo, todos os dias, quando pego na câmara. Salgado ensinou-me que a fotografia pode ser denúncia, pode ser poesia, pode ser um grito ou um abraço. Que pode fazer justiça, provocar empatia e desafiar o olhar. Que pode ser, acima de tudo, um gesto de amor ao outro.

Hoje, mais do que nunca, renovo esse compromisso. Porque se há algo que lhe devemos, é a coragem de continuar a olhar, com atenção, com cuidado, com verdade. 

Obrigado, Sebastião. Pela tua luz. Pela tua coragem. Pela ética com que nos ensinaste a ver e a contar o mundo.