Chamaram-lhes "cachopos", por viverem demasiado um sonho que tinham. Pois, há que colocar juízo nas cabeças dos jovens, não vão eles cometer crimes, como sonhar alto demais. E é por isso que a minha rua se chama 'Rua dos Cachopos', há já quase 40 anos. A história da Sópovo começa aqui, dois anos depois da revolução. O seu sucesso é inegável e continua hoje a ser uma referência, pela tenacidade, pela justiça, pela ambição de ter uma casa.
Mas não foi só a casa deles. Foi um bairro inteiro (E outro. E outro... E mais alguns). Fizeram-se casas para toda a gente. Toda não. Era preciso cumprir alguns requisitos. Os principais eram a escassez de riqueza e a qualidade de vida. A prioridade era dada a quem tivesse menos de ambas. Claramente, um momento 'menos é mais'. Mas eu não vivi nada disso. Se vivi, não me lembro. Convivi foi com eles, sem perceber nada do que tinham feito ou quem eram, para lá de meus vizinhos. Andava ali no meio deles, a ser uma criança feliz. A brincar na rua, com os meus amigos. De dia, de noite, sempre com um sentimento de plena segurança e companhia.
Não havia dias desertos. (talvez esteja a exagerar. No Verão, entre o almoço e as quatro da tarde a coisa não era assim como a estou a pintar.) Fora isso, era um parque de diversões quase sem limites. Jogos da bola; corridas de bicicleta; apanhada e escondidas; escalada ou rapel (ou lá o que fosse); até baloiços havia. Duraram foi pouco. E de vez em quando lá aconteciam coisas onde eu não podia entrar ou participar. Eu e os outros da minha idade. As matinés dançantes no anexo do Sousa eram um caso sério de popularidade. Eu não sei porquê. Ouvia música boa cá fora e pronto.
E as noites eram o mesmo fado, mas com outra luz. Tinham o bonús dos carros de rolamentos, que faziam barulho a noite toda na Rua 25 de Abril. Barulho, faísca, sangue... Corridas nocturnas de ciclismo, à volta do bairro. A coisa era séria. Era tudo cronometrado em Casios digitais, à prova de água. Mais que uma imagem, há um som que me marca: O "Ti-nó-nim" do Paulito. As horas em que ficavamos, sentados nos muros dos jardins suspensos, a ouvir as Histórias do Adosindo eram como ir hoje a um concerto de música clássica. Um gajo ficava a imaginar as frases dele em filme. Já agora, não levem à letra as "noites inteiras". As sirenes começavam a apitar as nove, e a segunda era a última chamada.
Tinhamos dois barbeiros com porta aberta no bairro. O Sevilha numa ponta e o Alberto na outra. O bairro era bonito e moderno, asseado e simpático. Sabiamos receber os clientes dos barbeiros, dos electricistas e dos mecânicos. Mas a cereja no topo era quando o Juvenal chegava, no Mercedes e com a cisterna. A festa em redor do camião era grande. Íamos desde a entrada do bairro até ao fim da António Sérgio atrás dele. Crescer ali foi Deluxe. Tal como foi um luxo ver o Rui a passar na Zundapp do pai entre o poste e a floreira do João Bucha. Hoje, há carradas disso no Youtube, mas naquele tempo tinha que ser in loco.
O bairro melhorou as condições de vida de centenas de pessoas que viviam em condições precárias, numa aldeia do concelho de Torres Novas, em 1979. E depois, mais algumas centenas. Não só em Riachos, mas por outras terras do concelho também. A Sópovo deixou uma marca indelével no nosso concelho e, podemos até diluir tudo o que de maravilhoso nos concedeu, no mesmo saco da sua queda. Ou então podemos procurar as respostas. E as estas estão sempre presentes. Importa é fazer as perguntas certas.
O sonho é sempre bem-vindo. Faz bem sonhar. Mesmo que seja alto de mais, vale sempre a pena sonhar. Talvez seja tempo de celebrar.