Violência na família

Estudante

As relações conjugais assentes nesta “relação de poder” serão sempre fontes de infelicidade e desgaste para quem as vive.

A evolução do estado de coisas, a nível socio-cultural, é quase sempre gradual e lenta, repleta de avanços e recuos constantes. Se é certo que em vários domínios da vida em comunidade alcançámos, sim, objectivos muito valiosos, outras situações continuam a destoar profundamente do ideal que possamos ter de uma sociedade mais justa. Sendo impensável que nos remetamos ao silêncio e à cobertura dos problemas que nos afligem, podemos e devemos reflectir sobre as suas profundas raízes e procurar entender as razões por que se fazem sentir ainda nas sociedades do séc. XXI.

Refiro-me, em particular, à multiplicidade de casos de violência doméstica, na sua dimensão física, sexual, verbal e psicológica - tendo como alvos crianças, adolescentes, mulheres e homens - que ainda hoje se verificam com tanta intensidade. Embora se tenha já observado reformas legislativas no que toca ao reconhecimento dos crimes de maus-tratos, bem como uma preocupação crescente com a sensibilização de agentes da justiça e forças de segurança e até com a institucionalização da dimensão do apoio à vítima, o adiamento prolongado de intervenção jurídico-criminal nesta matéria deixou marcas que se fazem ainda sentir no actual sistema jurídico e, inevitavelmente, no próprio entendimento social do fenómeno em causa. Surge como inegável a importância que a actuação do poder público assume no processo de consciencialização pública referente a algumas matérias, do mesmo modo que a transformação espontânea de estereótipos sociais deverá provocar no próprio sistema uma urgência de adequação a essa constante e necessária mutação social.

A análise do problema da violência no seio de uma família requer uma análise daquilo que é o próprio conceito de família e das noções e representações sociais que se lhe associam. Todas as formas de violência, para que historicamente se perpetuassem, foram encontrando mecanismos de justificação, quase sempre ideológicos, religiosos e políticos, dando margem para que se questionasse a sua existência ou até a sua correcção moral e função própria (no caso das crianças, o facto de se pensar, por exemplo, ser esse um método essencial e eficaz na sua formação e educação…). A tolerância perante os fenómenos violentos vividos na privacidade da família, e muitas vezes negação, está claramente associada a uma noção de família ideal, instituição fundamental para o desenvolvimento da vida humana, o lugar privilegiado para a preocupação e protecção incondicionais. Cada um tem, assim, uma posição específica a ocupar, quer numa relação conjugal, quer, por exemplo, numa relação pai-filho.

É comum que se tente justificar os maus-tratos pelo suposto mau desempenho da vítima naquele que é o seu papel conjugal (sendo paradigmáticas as situações de adultério), pelas próprias obrigações decorrentes da consumação de matrimónio, que justifica todo o tipo de actos violentos por parte do homem todo-poderoso que deve impor a disciplina no lar, punido e violentando a mulher e os filhos, quase tidos como propriedade. As relações conjugais assentes nesta “relação de poder” serão sempre fontes de infelicidade e desgaste para quem as vive. Por outro lado, os homens em situações abusivas no seio da relação conjugal estão clara e fortemente desprotegidos: o papel social e familiar que tradicionalmente lhes é atribuído não lhes deixa espaço para se apresentarem à sociedade, ou a si mesmos, como vítimas do que quer que seja.

E assim se sustentam desigualdades sociais, injustiças e graves problemas de direitos humanos. Desvalorizam-se situações de verdadeira miséria humana, de violência infantil e conjugal, desprezam-se relações conjugais e modelos de vida familiar alternativos ao padrão - apesar da crescente versatilidade de modelos de família a que assistimos. A família pode e consegue ser um lugar de opressão, e é preciso que o sistema judicial adeque a sua resposta a essa realidade. É também, e essencialmente, tarefa das entidades públicas competentes, criar condições para que se dê uma resposta cabal e multidisciplinar, de prevenção, educação e acompanhamento.

Opinião publicada no "Jornal Torrejano"