Discurso de Maria do Céu Rodrigues em nome do BE na Sessão Solene de 25 de Abril de 2023 em Torres Novas

«É essencial envolver os professores na renovação da escola e protegê-los para que se possam dedicar a essa tarefa; o que por certo lhes renovaria e nos devolveria, a todos, a esperança perdida: a esperança na utopia!»

Exmo. Senhor Presidente da Assembleia Municipal de Torres Novas

Exmos. membros da Assembleia Municipal de Torres Novas

Exmo. Senhor presidente da Câmara Municipal de Torres Novas

Exmos. vereadores da Câmara Municipal de Torres Novas

Exmos. Senhores presidentes das juntas de freguesia e outros autarcas aqui presentes

Exmos. representantes dos partidos políticos nos órgãos autárquicos de Torres Novas

Companheiras e companheiros, amigas e amigos,

Estou aqui, nesta efeméride tão significativa da nossa história contemporânea, e honrosamente nesta cerimónia solene que exalta a democracia e a liberdade, enquanto simpatizante do Bloco de Esquerda, na medida em que considero que este coletivo tem contribuído de forma pertinente para a discussão dos problemas do país, bem como à escala local, aqui em Torres Novas, agitando, para bem da democracia, o statu quo cristalizado pelos partidos que vêm ocupando o poder desde a revolução.

O foco do meu discurso prende-se com a Educação. Sou professora há 35 anos, quase 30 passados na Escola Maria Lamas. Começarei por afirmar, assumindo o paradoxo, que é possível viver uma utopia. Isso sucedeu aos 8 anos, por ocasião do 25 de abril, quando presenciei uma alteração súbita no círculo dos adultos, que se manifestou pela agitação das pessoas nas ruas, procurando-se umas às outras para falarem, pela primeira vez em muito tempo, em voz alta, de forma aberta, como se fossem próximas. Registei estes momentos de liberdade e fraternidade como a concretização daquilo que não sabia ser uma utopia.

No exercício da minha profissão, no contexto da sua missão, por vezes atinjo a utopia quando um ou outro aluno se supera no plano do conhecimento, da criatividade ou da ação cívica, exprimindo prazer e sendo felizes naquele tempo escolar. Como qualquer professor poderá confirmar, esta é a maior compensação que se pode obter. Não obstante, o prazer de ensinar está cada vez mais afastado do horizonte dos professores, tanto pelas caraterísticas do mundo que entrou pelos muros da escola, como pelas condições em que exercem a sua profissão.

Há algumas décadas, o desafio estava em a escola, esse velho dinossauro, ser capaz de mudar e de se reinventar face à nova sociedade, primeiro da informação e depois do conhecimento. Nessa altura, as Ciências da Educação ainda constituíam a referência válida para a melhoria organizacional e pedagógica. Mas foi a ministra Maria de Lurdes Rodrigues quem conseguiu iniciar uma mudança tão inesperada quanto brusca e insana nas escolas. As reformas e reformazinhas educativas têm-se sucedido, sem avaliação que se conheça, e no momento de as sucessivas tutelas arrepiarem caminho, depois de mais um enorme esforço de interpretação de orientações dúbias e difíceis de levar à prática, os professores são acusados de estarem, e estarem sempre, do lado errado.

É dúbio o tempo excessivo que as crianças passam na escola; é duvidosa a carga burocrática que preenche grande parte do tempo de trabalho; é ambígua a avaliação pedagógica e o valor dos exames; é controversa a estratégia de inclusão; é de acautelar a crescente dependência política do espaço escolar; é de espantar o número de organismos que gravitam em torno da escola e que a invadem com um número astronómico de solicitações, que, por melhores que sejam, desestruturam os planos de atividades.

Mas é especialmente perniciosa a falta de respeito para com os professores que são permanentemente postos em causa nas opções de gestão dos alunos e dos currículos. A questão da indisciplina que, em contextos sociofamiliares desestruturados, assume continuamente novos padrões, exigindo aos docentes uma enorme capacidade de análise, empatia e resiliência, contrapõem-se, intimamente, com o sofrimento pessoal e o sentimento de injustiça.

De facto, os professores são facilmente transformados, por outros, em bodes expiatórios. Sem qualquer negociação ou pré-aviso, as valências dos professores multiplicaram-se, abrangendo campos tão díspares como o apoio social ou familiar, a psicologia e a tutoria, a educação especial, a sexualidade, as rotinas burocráticas, a produção de eventos, a informática e, por fim, a prática letiva.

Envolvem-se, também, ativamente, no desenvolvimento de atividades com as quais procuram suprir o défice cultural, de informação, de vocabulário, cada vez mais reduzido, de valores universais necessários para uma apreciação crítica e construtiva do mundo - défice que a Internet afinal não colmatou de forma espontânea -, procurando reforçar a saúde mental e física de jovens mais sedentários.

Não têm surgido outras orientações fundamentadas para repensar a escola em função das verdadeiras necessidades dos jovens e os professores não têm espaço mental, temporal nem autoridade para tal. Não são de esperar reformas que promovam efetivamente o potencial dos alunos quando os interesses económicos e o poder político emudecem os propósitos educativos.

Não é demais salientar a precariedade a que uma percentagem elevada de docentes está sujeita e que, ao fim de décadas, não sabe onde e como será o próximo ano letivo, quando e se se efetivará, quando poderá auferir de um salário compatível com o tempo de serviço e experiência acumulados, sacrificando a qualidade de vida num percurso cheio de incertezas e sobressaltos.

Que dizer dos docentes com doença prejudicados nas suas colocações? Questionamo-nos, também, naturalmente, sobre a disparidade com que alguns, neste país, podem acumular compensações quando se assume como legal e definitiva a subtração de tempo de serviço dos docentes.

Tal como sucede com os profissionais de saúde, os professores estão a escassear. Acresce, porém, que na escola também a população discente tende a diminuir, já que os jovens que forma dificilmente conseguem constituir as suas próprias famílias, focados que estão em sobreviver, optando, muitos, pela emigração. Que sociedade é esta que tacitamente evita o nascimento de crianças, adultera a sua infância e esperança de realização e dificulta a ação da escola pública e das famílias? Que fragilidades e diferenças estamos a acentuar entre os nossos jovens?

“A paz, o pão, a saúde e a educação” foram o nosso mote para um futuro promissor, antevisto a 25 de abril de 1974. Quarenta e nove anos depois, traçamos já um rumo desviante desses ideais básicos, em direção à distopia, sob o imperativo cego do crescimento económico à escala global e uma impensável regressão dos direitos dos assalariados. Acresce, entre nós, a gestão danosa e a corrupção que defraudam o esforço dos contribuintes e as contas do país, degradando a imagem nacional e dificultando a nossa saída da cauda da Europa. É inolvidável o recuo civilizacional inerente a todas as guerras e em particular àquela que a Rússia inflige à Ucrânia, num momento em que deveríamos concentrar todos os esforços na redução da grave crise ambiental a que chegámos.

Por conseguinte, e como ponto de partida para a ação conjunta, temos, hoje e sempre, que fazer o devido uso da liberdade de expressão que conquistámos com a Revolução e argumentar abertamente, sem nos tolhermos face aos poderes e opiniões dominantes. É também fundamental que o façamos de forma crítica, conjugando múltiplas perspetivas, numa intenção construtiva, tão límpida como o amor e o desejo de felicidade que devotamos aos nossos filhos e que devemos, de igual modo, a todas as crianças e jovens da nossa comunidade.

Abril está cada vez mais longe no tempo, mas ainda é um porto seguro, em termos de valores, para onde temos a obrigação de conduzir as próximas gerações.

Concluindo, e retomando o foco no ensino, como parte do todo, é necessário trazer para a escola pública a reflexão e a mudança com base numa relação equilibrada e justa entre o ensino e a sociedade, que permita potenciar e valorizar as múltiplas capacidades dos jovens.  É essencial envolver os professores na renovação da escola e protegê-los para que se possam dedicar a essa tarefa; o que por certo lhes renovaria e nos devolveria, a todos, a esperança perdida: a esperança na utopia!

Maria do Céu G. D. Rodrigues

25 de Abril de 2023