Dum país de fantasia a um país zangado

Historiador, professor aposentado

Cabe aos partidos políticos democráticos assumirem que chegou a altura dum novo ciclo, onde a participação popular se não pode resumir ao voto numa sigla, sem que haja uma inter-relação quotidiana com a sua vida comum.

Em 2022 o país eleitoral, com medo de que O PSD se aliasse com o Chega e o país virasse á direita, optou pelo voto útil, eliminando a força eleitoral dos partidos de esquerda, o PCP e O BE, deu a maioria absoluta ao PS,(41,68%), que espantado com a saída do Euromilhões, se lançou numa arrogância de novo-rico. Em dois anos, António Costa desbaratou a fortuna que a insegurança populacional proveniente da pandemia lhe colocara nas mãos. Conseguiu diminuir a força dos partidos à sua esquerda, rafeirou a geringonça que lhe garantira prestígio e capacidade de realização. Optou pelo orgulhosamente sós de que tão maus exemplos existiam na memória do povo português. Armado em tio Patinhas, foi, com o olho numa cadeira de poder europeu, cumprindo as regras de Bruxelas, à custa da proletarização da classe média, da saída emigratória da juventude universitária e dos técnicos e profissionais adultos, a troco da arrecadação do amoedado turístico internacional, transformando Portugal numa Disneylândia e num entreposto dos nómadas digitais e milionários dos offshores das negociatas ilícitas. Os cofres encheram-se, as reservas de ouro atingiram escalões elevados. Mas os nativos lusos começaram a zangar-se com a diferença entre o salário recebido e o preço do necessário mensal para a renda da casa, o empréstimo bancário, a alimentação familiar, a luz, a água, o gás, os medicamentos, os transportes. A população envelhecida ia-se tornando maioritária, os custos da saúde aumentavam. Os impostos directos e indirectos transformaram-se na receita sistémica de Medina para o cumprimento dos Orçamentos e diminuição da dívida pública.

Nesses dois anos, na Assembleia da República, o André Ventura, cabeça e dono do Chega, dava baile e missa cantada, ante a revolta, dalgumas bancadas, a indiferença de outras, e a protecção do PS, assente na política do dividir para reinar.  

O aprendiz de feiticeiro, quando se arma a criar mezinhas e artimanhas que não controla, mete os pés na poça e põe a vida, dos que dele dependem, em risco. E, cria anticorpos que, se no princípio geram apenas uma inflamação de garganta ligeira, com a continuação do despautério, transformam-se numa rouquidão persistente. a caminhar para algo de grave.

Dois anos depois, o feiticeiro-mor, que nunca gostou das combinações dos ácidos e óxidos do seu aprendiz, só esperou o momento em que o abuso começara a escandalizar o pessoal do reino, para lhe trocar as voltas e mandá-lo para as urtigas, momento azado com um relatório da procuradoria, e, pensado há muito, executou-o logo.

Demissão do governo, eleições legislativas, umas intervenções enevoadas a favor dos seus favoritos, assim como quem não quer a coisa, que ser feiticeiro-mor tem os seus quês, as experiências alquímicas devem permanecer meio escondidas.

Eleições realizadas, comprovou-se que a zanga popular atingira proporções que a todos espantou. Se se previa a queda do PS, ainda se admitia que venceria pelos mínimos. Era uma operação a uma apendicite, que o desleixo e a indiferença tornara aguda. Perdeu. Foi derrotado, à bruta. A maioria silenciosa, que há dois anos votara contra Ventura, agora queria Ventura. Pôs a cruz no Chega.

A zanga popular, essa coisa silenciosa que nunca diz quem é, apontava mais fundo, dizia também aos partidos tradicionais da direita que não confiava neles. E aos de esquerda, que fossem mais claros.

50 anos depois do 25 de Abril, a democracia era, para aquela voz escondida, um pesadelo: afundava-se na corrupção, na falência da Justiça, no aumento da desigualdade, nos baixos salários, na educação em refluxo, na saúde pública desacreditada, nos despejos das famílias, num sem número de coisas que faziam sofrer, faziam doer, faziam enraivecer, faziam odiar. A democracia que Abril conquistara estava a transformar-se numa barraca de espelhos das antigas feiras, onde a forma mudava no convexo e côncavo do espelhado. Era preciso um regresso ao messianismo defensor dum futuro ridente, onde a sede tenha água que a acalme e a fome o alimento que a mata. E o Chega, pelo seu incarnado Messias, correspondia aos seus anseios. Alimentava-lhe a zanga. Acirrava-lhe o ódio. Prometia-lhe o regresso ao paraíso. 

O país pós-eleitoral de 2024 espantou-se. A subida do Chega a terceira força política, a exigir ser governo. Os partidos do centro/direita e centro/ esquerda, tão próximos, como gémeos desavindos, a contarem as espingardas, sem saberem muito bem como resolver a relação governo/oposição, enquanto as esquerdas plurais, minoritárias, respiram de alívio por sobreviverem, mas atentas, assumem resistir.

Alcácer-Quibir anunciou o fim de D. Sebastião. A ambição cega levou, anos depois, um povo angustiado à submissão estrangeira.

Entrámos, ontem 10 de Março, num novo ciclo.

Para bem da manutenção da democracia, é importante compreender que a zanga dum povo resulta do afastamento e do modo como o tratam. Cabe aos partidos políticos democráticos assumirem que chegou a altura dum novo ciclo, onde a participação popular se não pode resumir ao voto numa sigla, sem que haja uma inter-relação quotidiana com a sua vida comum.

Defender Abril é, em cada dia, refazer o presente, com as populações. A democracia, então, vencerá.

Texto publicado no 'Jornal Torrejano'