Entre o 25 de Abril e o 1.º de Maio

Historiador, professor aposentado

O que parecia dramático e exigia medidas drásticas na luta colectiva, de respeito pela humanidade, agravou-se com a eclosão duma pandemia, que, pela sua maligna impetuosidade, veio abrir brechas num sistema assente na desigualdade e na exploração do mais fraco.

Entre o 25 de Abril e o 1º de Maio, seis dias. O espaço que religa, num pensamento sentido, Liberdade e Igualdade. Símbolos de muitas lutas, para além da história da ambas as datas, que os que possuem como troca a sua força de trabalho, física e mental, tiveram de sustentar, vitoriosos umas vezes , derrotados noutras, em defesa do pão, do salário, da saúde, da paz, da educação. Make love, not War, gritava-se, em Maio de 1968, nas ruas de Paris. Fascismo nunca mais, em Maio de 1974, em Portugal. E novas bandeiras se juntaram às primeiras, seculares. Umas, mais pacíficas, o ambiente, o desarmamento, a defesa dos animais. Outras, mais controversas, ainda em contínua gestação, com ruelas armadilhadas nas amáveis concessões: a igualdade jurídica da mulher, o direito ao seu corpo, a legalização do aborto; outras, também polémicas, mas racionalmente igualitárias: o casamento homossexual, o direito a adopção.

Entrou-se no século XXI, mudando o calendário dum século, com a euforia dum novo renascimento, como se o que ontem pareciam barreiras muito difíceis de transpôr, com as novas tecnologias, a informática, a inteligência artificial, o prolongamento da esperança de vida, a perspectiva dum caminho onde, em definitivo, cessasse a exploração do homem pelo homem, se transformassem apenas em más, mas ultrpassadas memórias, só isso, para as novas gerações.

O sonho comanda a vida, Manuel Freire enchia-nos, os que vinhamos doutras guerras e combates, de confiança num mundo melhor para os nossos filhos e netos.

Mas o mundo não é a branco e preto, e o arco-íris só aparece depois da ameaça de chuva. 20 anos depois, a globalização agravou, em vez de suavizar, as desigualdades entre classes, géneros e raças; dentro da cada país o divórcio entre ricos e pobres agudizou as relações de classe, anestesiados os últimos com miragens publicitárias da sociedade de consumo, onde o reverso da euforia se transformou no pesadelo cada vez mais terrorista do trabalho sem contrato, nem futuro, numa estrada que se estreitou ante as ameaças constantes aos direitos outrora duramente conquistados.

A crise do capitalismo atingiu todos os sectores da vida, e por todo o lado se têm erguido  vozes de aviso e de protesto sobre as ameaças que impendem sobre a própria espécie, condenando a sede de poder e de exploração que conduzem, não só à precariedade da existência da maioria dos seres humanos, como contribuem para a transformação do planeta num local cada vez mais perigoso e irrespirável para a vida, seja  biológica, seja humana.

O que parecia dramático e exigia medidas drásticas na luta colectiva, de respeito pela humanidade, agravou-se com a eclosão duma pandemia, que, pela sua maligna impetuosidade, veio abrir brechas num sistema assente na desigualdade e na exploração do mais fraco. Mas, contraditoriamente, ao encerrar o capítulo das relações sociais de vida colectiva num confinamento de sobrevivência, agravando egoismos, quer nacionalistas, quer geracionais, colocando a opção da continuidade num prato da balança e noutro a selecção para a futura arca pós-pandémica, veio fazer ressurgir e reforçar solidariedades e crescentes opções, de que o mundo que vier tem de ser por todos construído e partilhado. E o desejo colectivo de intervenção pública suplanta a ambição de retorno económico do privado, antepondo a importância da vida, da infância à velhice, ao desejo do lucro e das mordomias assentes na desilgualdade do valor do diverso, mas complementar, trabalho social. E a democracia política, económia e social deve sair reforçada, neste reencontro com a alternativa, a da vida em comum, da igualdade do ser humano, da sua dignidade, dos seus direitos e deveres para com a sociedade. Queira-se ou não, acredite-se ou não, a pandemia abriu novas portas na casa do Homem. O futuro nunca mais será mesmo.

Impedido, assim,  de festejar na rua  o seu dia , o trabalhador poderá contribuir para que este 1º de Maio, mesmo só televisivo, ou digital, ou  transformado em mensagem de unidade  de telemovel em telemovel, contribua para  o desmoronamento  do velho mundo da capitalismo liberal, e a palavra igualdade surja, reforçada, como o ponto de partida para os novos combates por uma sociedade mais  humanizada..

Daí o meu voto, para todos os trabalhadores, de que este 1º de Maio de 2020 seja o primeiro dum novo mundo que depende unicamente do seu esforço e combate para ser construido.

António Mário Lopes dos Santos

Professor reformado