A revolta e o ódio pelo próximo

Da autoria de Patrícia Alves, Hugo Paz e Mariana Varela, este artigo reflecte o papel das redes sociais no debate político e na cidadania.

« A permanente distração daqueles que são os focos dos verdadeiros problemas contribui para que eles não se alterem, a energia despendida no discurso de ódio e na postura divisionista fragmenta a sociedade e enfraquece-a, deixando-a vulnerável a ataques dissimulados daqueles que acumulam anos e anos no poder, a nível central e local, e dos que vão lucrando e retirando vantagens deste estado de coisas doentio.»

As redes sociais transformaram-se na forma de comunicação por excelência entre desconhecidos. Transformaram, aliás, a nossa comunicação, permitindo a aproximação digital de um conjunto de pessoas, comunidades nacionais e internacionais, possibilitando até a visibilidade de um conjunto de questões e testemunhos importantes. São hoje plataformas onde se trocam diariamente inúmeras impressões sobre os mais variados temas (algo que se intensificou com o contexto pandémico), onde impera, verdade seja dita, a liberdade de expressão – o que não é, de todo, aquilo que nos preocupa. Pelo contrário, é o conteúdo de algumas dessas impressões que se revela bastante desanimador e assustador, não porque algumas pessoas “dizem o que pensam”, mas porque não pensam no que dizem, deixando apenas bem clara a sua profunda revolta e incapacidade para ver no outro um seu semelhante e procurar conhecer a sua realidade, as suas intenções e desejos. A fuga é o insulto e o desrespeito, a exteriorização de raiva sem qualquer motivo que o justifique, só porque é raiva que se sente, independentemente daquilo que vemos ou de quem vemos como causa desse nosso descontentamento. Não importam os alvos, o ódio está instalado. Os problemas estruturais agravam-se, enquanto se travam inúteis lutas guiadas pelo lema “salve-se quem puder”.

Infelizmente, episódios tristes de ofensas graves e comentários desagradáveis (recorrendo, claro, a eufemismos) são uma constante da “vida online”, e nos últimos dias, a propósito da divulgação por parte do Bloco de Esquerda (BE) de Torres Novas de alguns dos seus candidatos para as Eleições Autárquicas de 2021 num dos grupos mais visitados pelos torrejanos – o grupo “Cidade de Torres Novas”, que conta com mais de 20 mil membros, número bastante elevado para um concelho que, segundo os resultados preliminares dos Censos 2021, reúne 34.149 pessoas – assistiu-se a mais um desses momentos lamentáveis (alguns dos comentários foram já eliminados). Primeiro, foi dado a conhecer o segundo candidato do BE à Câmara Municipal, Ilpo Anton Lalli, de 27 anos, nascido na Suécia, criado em Torres Novas e de nacionalidade portuguesa, que foi rapidamente atacado por razões tão absurdas como a sua aparência, a sua hipotética nacionalidade estrangeira, numa linha de insulto que se prendia com o facto de um “estrangeiro” (que não o é), ser candidato por Torres Novas, mas que não ficou por aí. Rapidamente a baixeza moral dos insultos se estendeu ao seu aspeto físico. De seguida, a também candidata do BE à Câmara Municipal Ana Sofia Ligeiro, foi alvo de ofensas nos mesmos termos. Aquilo que observamos em ambos os casos é dramático, não pelo facto de alguns não simpatizarem com os candidatos e suas orientações políticas, mas pela vaga de desrespeito e ofensa gratuita que se alastrou, a roçar o maléfico. Tratando-se de candidatos a órgãos autárquicos, e não havendo uma ligação direta ou proximidade com as pessoas em causa, parece óbvio que a aversão às suas candidaturas em nada tem que ver com as suas capacidades para exercer as funções a que se propõem. Aliás, neste caso, seria impossível haver uma opinião formada acerca disso, sendo estes candidatos novos (como tantos outros que se apresentam, pelo BE, a estas eleições). Recordamos, ainda, que todos os candidatos do BE estão dotados de plena capacidade eleitoral, para eleger e ser eleitos, nos termos do disposto no Artigo 50.º da Constituição da República Portuguesa (no que respeita ao direito de acesso a cargos públicos) e nos Artigos 5.º e 6.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto), que se referem aos cidadãos com capacidade eleitoral passiva e aos que, por outro lado, são inelegíveis. As ofensas dirigidas ao aspeto físico valem o que valem: nada. São apenas reveladoras do desnorte e vazio que se faz sentir nas vidas daqueles que as proferem. Também a nacionalidade não é, nem poderia ser, um problema. O Ilpo Lalli é português, embora nascido em território sueco, mas ainda que não fosse essa a realidade, em nada comprometeria a competência e compromisso do candidato para desenvolver o seu trabalho em prol do bem-estar da comunidade torrejana. Importa ter presente que qualquer pessoa, ainda que sendo oriunda da Suécia, Brasil ou Roménia, pode tomar a decisão de residir em Portugal, ou em Torres Novas, devendo por isso ver assegurados os seus direitos fundamentais, à habitação, saúde e educação, incluindo o seu direito de participação política.

Estas posições incompreensíveis e desprovidas de qualquer fundamento levam-nos a questionar a sua verdadeira origem. Xenofobia? Revolta? Ódio? Demasiado tempo livre? Tempo livre não será justificação, dado que há muito para fazer que não passa por insultar desconhecidos nas redes sociais. A resposta poderá residir na atitude xenófoba, na revolta e ódio pelo próximo, que, note-se, também são consequência de algo maior. A irritação é generalizada, contudo, o mesmo não podemos dizer de uma possível e desejável vontade de ver a mudança acontecer. A permanente distração daqueles que são os focos dos verdadeiros problemas contribui para que eles não se alterem, a energia despendida no discurso de ódio e na postura divisionista fragmenta a sociedade e enfraquece-a, deixando-a vulnerável a ataques dissimulados daqueles que acumulam anos e anos no poder, a nível central e local, e dos que vão lucrando e retirando vantagens deste estado de coisas doentio. A evolução das relações interpessoais e da sociedade como um todo só é possível através da alteração profunda de um conjunto de fatores sistémicos, da valorização de direitos fundamentais e da formação de cidadãos ativos e participativos. Felizmente, foi com agrado que assistimos a um movimento espontâneo de solidariedade para com os alvos dos comentários insultuosos, que nos faz crer na preservação de valores humanos essenciais à nossa existência em sociedade. De facto, aquilo que retiramos de positivo e animador desta situação foi a forma como muitos fizeram com que prevalecessem os valores democráticos, a união e respeito mútuo. Nos momentos de decadência e maliciosidade da nossa intercomunicação, só essa defesa conjunta e firme de valores essenciais pode derrubar o mal que espreita.

A Internet é um lugar imenso e complexo, nele podemos dialogar, encontrar entretenimento e ter acesso a um conjunto de meios de informação que nos permitem, muitas vezes, conhecer e explorar determinados fenómenos sociais, de forma rápida. É urgente utilizá-los da forma mais benéfica possível, procurando melhorar as interações sociais e aproveitar os meios de informação que temos ao nosso alcance de forma útil e positiva.

Da autoria de Patrícia Alves, Hugo Paz e Mariana Varela